quarta-feira, 4 de junho de 2008

PRECONCEITO LINGUÍSTICO

  • FAVORÁVEL À TESE
NADA NA LÍNGUA É POR ACASO: ciência e senso comum na educação em língua materna
Marcos Bagno (Universidade de Brasília)(Artigo de Marcos Bagno publicado na revista Presença Pedagógica em setembro de 2006)
Quando o assunto é língua, existem na sociedade duas ordens de discurso que se contrapõem: (1) o discurso científico, embasado nas teorias da Lingüística moderna, que trabalha com as noções de variação e mudança; e (2) o discurso do senso comum, impregnado de concepções arcaicas sobre a linguagem e de preconceitos sociais fortemente arraigados, que opera com a noção de erro.
Para as ciências da linguagem, não existe erro na língua. Se a língua é entendida como um sistema de sons e significados que se organizam sintaticamente para permitir a interação humana, toda e qualquer manifestação lingüística cumpre essa função plenamente. A noção de "erro" se prende a fenômenos sociais e culturais, que não estão incluídos no campo de interesse da Lingüística propriamente dita, isto é, da ciência que estuda a língua "em si mesma", em seus aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos. Para analisar as origens e as conseqüências da noção de "erro" na história das línguas será preciso recorrer a uma outra ciência, necessariamente interdisciplinar, a Sociolingüística, entendida aqui em sentido muito amplo, como o estudo das relações sociais intermediadas pela linguagem.A noção de "erro" em língua nasce, no mundo ocidental, junto com as primeiras descrições sistemáticas de uma língua (a grega), empreendidas no mundo de cultura helenística, particularmente na cidade de Alexandria (Egito), que era o mais importante centro de cultura grega no século III a.C.Como a língua grega tinha se tornado o idioma oficial do grande império formado pelas conquistas de Alexandre (356-323 a.C.), surgiu a necessidade de normatizar essa língua, ou seja, de criar um padrão uniforme e homogêneo que se erguesse acima das diferenças regionais e sociais para se transformar num instrumento de unificação política e cultural.Data desse período o surgimento daquilo que hoje se chama, nos estudos lingüísticos, de Gramática Tradicional - um conjunto de noções acerca da língua e da linguagem que representou o início dos estudos lingüísticos no Ocidente. Sendo uma abordagem não-científica, nos termos modernos de ciência, a Gramática Tradicional combinava intuições filosóficas e preconceitos sociais. As intuições filosóficas que sustentam a Gramática Tradicional estão presentes até hoje na nomenclatura gramatical e nas definições que aparecem ali. Por exemplo, a noção de sujeito que encontramos em importantes compêndios normativos se expressa como "o sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração", ou coisa equivalente. Como é fácil perceber, não se trata de uma definição lingüística - nada se diz aí a respeito das funções do sujeito na sintaxe nem das características morfológicas do sujeito -, mas sim de uma definição metafísica, em que o próprio uso da palavra "ser" denuncia uma análise de cunho filosófico. Com isso, o emprego desta noção para um estudo propriamente lingüístico fica comprometido.
A Gramática Tradicional merece ser estudada, como um importante patrimônio cultural do Ocidente, mas não para ser aplicada cegamente como única teoria lingüística válida nem, muito menos, como instrumental adequado para o ensino.Além de ser anacrônica como teoria lingüística, a Gramática Tradicional também se constituiu com base em preconceitos sociais que revelam o tipo de sociedade em que ela surgiu - preconceitos que vêm sendo sistematicamente denunciados e combatidos desde o início da era moderna e mais enfaticamente nos últimos cem anos. Como produto intelectual de uma sociedade aristocrática, escravagista, oligárquica, fortemente hierarquizada, a Gramática Tradicional adotou como modelo de língua "exemplar" o uso característico de um grupo restrito de falantes:" do sexo masculino;" livres (não-escravos);" membros da elite cultural (letrados);" cidadãos (eleitores e elegíveis);" membros da aristocracia política;" detentores da riqueza econômica.
Os formuladores da Gramática Tradicional foram os primeiros a perceber as duas grandes características das línguas humanas: a variação (no tempo presente) e a mudança (com o passar do tempo). No entanto, a percepção que eles tiveram da variação e da mudança lingüísticas foi essencialmente negativa.Por causa de seus preconceitos sociais, os primeiros gramáticos consideravam que somente os cidadãos do sexo masculino, membros da elite urbana, letrada e aristocrática falavam bem a língua. Com isso, todas as demais variedades regionais e sociais foram consideradas feias, corrompidas, defeituosas, pobres etc.Ainda na questão da variação, os primeiros gramáticos, comparando a língua escrita dos grandes escritores do passado e a língua falada espontânea, concluíram que a língua falada era caótica, sem regras, ilógica, e que somente a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e servir de base para o modelo do "bom uso" do idioma. Essa separação rígida entre fala e escrita é rejeitada pelos estudos lingüísticos contemporâneos, mas continua viva na mentalidade da grande maioria das pessoas.Comparando também a língua falada de seus contemporâneos e a língua escrita das grandes obras literárias do passado, eles concluíram que, com o tempo, a língua tinha se degenerado, se corrompido e que era preciso preservá-la da ruína e da deterioração. Tinham, portanto, uma visão pessimista da mudança, resultante do equívoco metodológico - que só veio a ser detectado e abandonado muito recentemente - de comparar duas modalidades muito distintas de uso da língua (a escrita literária e a fala espontânea), desconsiderando a existência de um amplo espectro contínuo de gêneros discursivos entre esses dois extremos.Com isso, os elaboradores das primeiras obras gramaticais do mundo ocidental definiram os rumos dos estudos lingüísticos que iam perdurar por mais de 2.000 anos:" desprezo pela língua falada e supervalorização da língua escrita literária;" estigmatização das variedades não-urbanas, não-letradas, usadas por falantes excluídos das camadas sociais de prestígio (exclusão que atingia todas as mulheres);" criação de um modelo idealizado de língua, distante da fala real contemporânea, baseado em opções já obsoletas (extraídas da literatura do passado) e transmitido apenas a um grupo restrito de falantes, os que tinham acesso à escolarização formal.
Com isso, passa a ser visto como erro todo e qualquer uso que escape desse modelo idealizado, toda e qualquer opção que esteja distante da linguagem literária consagrada; toda pronúncia, todo vocabulário e toda sintaxe que revelem a origem social desprestigiada do falante; tudo o que não conste dos usos das classes sociais letradas urbanas com acesso à escolarização formal e à cultura legitimada. Assim, fica excluída do "bem falar" a imensa maioria das pessoas - um tipo de exclusão que se perpetua em boa medida até a atualidade.Os preceitos e preconceitos da Gramática Tradicional só começaram a ser questionados a partir do século XIX, com o surgimento das primeiras investigações lingüísticas de caráter propriamente científico. Embora contestada pela ciência moderna, aquela visão arcaica e preconceituosa de língua e de linguagem penetrou no senso comum ocidental e ali permanece firme e forte até hoje.O processo de normatização, ou padronização, retira a língua de sua realidade social, complexa e dinâmica, para transformá-la num objeto externo aos falantes, numa entidade com "vida própria", (supostamente) independente dos seres humanos que a falam, escrevem, lêem e interagem por meio dela.Isso torna possível falar de "atentado contra o idioma", de "pecado contra a língua", de "atropelar a gramática" ou "tropeçar" no uso do vernáculo. Todo esse discurso dá a entender (enganosamente) que a língua está fora de nós, é um objeto externo, alguma coisa que não nos pertence e que, para piorar, é de difícil acesso.A criação de um padrão de língua muito distante da realidade dos usos atuais fez surgir, em todas as sociedades ocidentais, uma milenar "tradição da queixa". Em todos os países, em todos os períodos históricos, sempre aparecem as manifestações daqueles que lamentam e deploram a "ruína" da língua, a "corrupção" do idioma etc. Acerca da suposta decadência da língua portuguesa, sirvam de exemplos as seguintes declarações apocalípticas, que se desdobram ao longo de quase trezentos anos:
  1. "Se não existissem livros compostos por frades, em que o tesouro está conservado, dentro em pouco podíamos dizer: ora morreu a língua portuguesa, e não descansa em paz" (José Agostinho de Macedo [1761-1831], escritor português)."
  2. "Temos a prosa histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raça moribunda. A nossa pobre geração de anémicos dá à história das letras um ciclo de tatibitates" (Ramalho Ortigão [1836-1915], escritor e político português). "
  3. "[...] português - um idioma que de tão maltratado no dia-a-dia dos brasileiros precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm como língua materna" (Mario Sabino, Veja, 10/9/1997). "
  4. "Não fique nenhuma dúvida, o português do Brasil caminha para a degradação total" (Marcos de Castro, A imprensa e o caos na ortografia, Ed. Record, 1998, p. 10-11). "
  5. "Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo [...]" (Dad Squarisi, Correio Braziliense, 22/7/1996)."
  6. "Nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa" (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo, 15/1/1998). " "[...] o usuário brasileiro da língua [...] comete erros, impropriedades, idiotismos, solecismos, barbarismos e, principalmente, barbaridades" (Luís Antônio Giron, revista Cult, no 58, junho de 2002, p. 37).
    Em contraposição à noção de "erro", e à "tradição da queixa" derivada dela, a ciência lingüística oferece os conceitos de variação e mudança. Enquanto a Gramática Tradicional tenta definir a "língua" como uma entidade abstrata e homogênea, a Lingüística concebe a língua como uma realidade intrinsecamente heterogênea, variável, mutante, em estreito vínculo com a realidade social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade extremamente dinâmica e multifacetada só pode apresentar uma língua igualmente dinâmica e multifacetada.
  • CONTRÁRIOS À TESE

Quem come quem? Olavo de Carvalho

Texto original. Distribuído aos alunos do Seminário de Filosofia em 12 jun. 1999.

A luta pela "identidade nacional" na cultura brasileira tem sido uma longa comédia de erros. Enquanto nossos vizinhos buscavam sabiamente fortalecer os laços que os uniam à cultura hispânica de origem, lutávamos obsessivamente para cortar toda nossa raiz lusitana. Se é verdade que "pelos frutos os conhecereis", está na hora de admitir que apostamos no cavalo errado. De um lado, há perfeita continuidade de Perez Galdós a Jorge Luís Borges, de Unamuno a Octavio Paz, enquanto entre nossos literatos (para não falar de estudantes de letras) não se encontrará um só que, lendo Camilo Castelo Branco, não esgasgue a cada linha, intimidado por um vocabulário que com apenas um século de idade se tornou impenetrável mistério antediluviano. De outro lado, o idioma espanhol se afirma poderosamente como língua de cultura mundial, enquanto o português vai perdendo terreno aqui dentro mesmo, acossado pelo barbarismo midiático, manietado pelos fiscais politicamente corretos, açoitado pelos feitores da incorreção obrigatória.
Um efeito cíclico da nossa obsessão identitária é que, quanto mais nos afastamos da nossa raiz autêntica lusitana, mais temos de tomar emprestada a seiva alheia, seja francesa ou americana, e mais a nossa sonhada autenticidade se torna uma caricatura do estrangeiro. E o motivo disto é bem evidente: recusando-nos a desenvolver formas e estilos a partir de uma tradição lingüística própria, não nos resta alternativa senão rebaixar-nos a fornecedores de matéria-prima. Já no Romantismo, nós entrávamos com os papagaios e os coqueiros, Chateaubriand com a fórmula literária. Ora, em literatura, a forma é tudo: cor local, temas, cenários e documentarismo lingüístico contribuem menos para definir a nacionalidade de uma obra do que o faz a forma interna, esta sim, inconfundivelmente americana ou russa, inglesa ou lusa. A narrativa ágil e quase jornalística dos romances de Hemingway é sempre americana, quer a história se passe em Paris ou se adorne de acento espanhol. Imitada em francês, em malaio ou em urdu, permanece americana, pela força da matriz lingüistica onde foi gerada como solução americana para problemas expressivos americanos. Mais nos valeria, pois, ter desenvolvido a novela camiliana, mesmo que fosse em histórias passadas na África ou no planeta Marte, do que adaptar os temas nacionais ao modelo proustiano ou ao realismo socialista, ainda que temperados de gíria baiana ou mineira. O primado da forma, a sujeição da matéria, são leis inescapáveis, em literatura como em tudo o mais: "Quando o coelho come alface, é a alface que vira coelho, não o coelho que vira alface", resume Jean Piaget. Cobras e índios no molde literário de Apollinare não são cultura brasileira: são o delírio de um turista francês, intoxicado de cauim. O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo. E um candomblé na Sorbonne não é sincretismo brasileiro: é a antropologia francesa engolindo o Brasil.
Mais fez pela brasilidade do romance um Machado de Assis, criando com assunto urbano e em português castiço a fórmula inédita das Memórias Póstumas (não há por que exgerar a influência de Sterne), do que dezenas de imitadores de Zola narrando histórias de escravos com sintaxe de cangaceiro. Uma nova fórmula vale mil assuntos. Ser brasileiro, para um romancista, é integrar a experiência — local ou mundial, pouco importa — numa chave intelectual e estética criada por nós segundo as nossas necessidades, e não integrar materiais locais e trejeitos lingüísticos regionais numa tradição narrativa francesa ou inglesa. É uma simples questão de quem come quem.
O protesto de Evaldo Cabral de Melo, de que só povos complexados se preocupam com a própria identidade, pode ser aceito como um exagero corretivo, mas continua exagero. A obsessão germanizante de um povo em luta com o complexo de inferioridade gerou Hermann e Dorothea e a filosofia de Fichte, Schelling e Hegel. E a afirmação xenófoba do russismo contra a hegemonia franco-germânica produziu Dostoiévski, Soloviev e Lossky. Abençoada neurose!
Nosso erro não está em buscar uma identidade. Está em três fontes de engano, nas quais bebemos compulsivamente há mais de um século. Primeira: revoltamo-nos sempre contra o dominador errado. Escravos da Inglaterra, continuávamos a nos bater contra o extinto domínio português. Intoxicados de francesismo, esforçávamo-nos por expelir de nosso ventre os últimos resíduos da herança portuguesa. E hoje, paralisados sob as patas do império mundial anglófono, encenamos ainda um ridículo Ersatz de rebeldia, não anti-anglo-saxônica e sim antilusitana, jogando bombas ideológicas contra a "língua dos dominadores", como se o FMI fosse presidido por Cândido de Figueiredo e a Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida fosse a Carta da ONU. Vista sob esse prisma, nossa pretensa busca de independência não é senão afetação e disfarce para encobrir nosso compulsivo puxa-saquismo, nossa incoercível devoção ao poder mais forte, nossa renitente hipnose de botocudos ante os prestígios internacionais do momento.
A segunda coisa: acreditamos demais na mágica besta do popular, do local, do costumeiro e corriqueiro. Achamos que falando de coisinhas do nosso dia a dia e imitando a fala do povo seremos nacionais, quando a força da criação nacional não está na sua matéria, muito menos no populismo do seu estilo, e sim na originalidade das soluções estéticas e intelectuais que, uma vez bem sucedidas, se transformam em soluções e modelos para outros escritores de outras nações. Dostoiévski não representa o gênio russo porque fala da Rússia ou porque imita a fala dos russos, mas porque inventou, desde a Rússia, um sistema de enfoques narrativos que desde então se tornou necessário para todos nós, seja para falarmos da Rússia, seja de nós mesmos. A originalidade de uma literatura nacional é enfim uma só e mesma coisa que a originalidade criativa de seus escritores, a qual por sua vez não é senão a capacidade de dar respostas sérias a ansiedades autênticas. E, quando isto falta, não há documentarismo, populismo ou automacaquice lingüística que o substitua.
A terceira fonte de engano é a perpétua confusão que fazemos entre o universal e o atual. Achamos que, para integrar-nos na cultura mundial, temos de acompanhar o debate que se desenrola entre os povos mais ricos e supostamente mais cultos. Nunca nos ocorre a hipótese de que, no curso desse debate, esses povos possam ter perdido o fio da sua própria tradição cultural, de que possam estar reduzidos à mais profunda incompreensão de si mesmos, de que possam estar mergulhados numa inconsciência que só um maluco suicida desejaria imitar. Tomamos sempre os povos importantes de hoje como se fossem os únicos intérpretes autorizados da tradição ocidental (para não dizer mundial), e nos recusamos a lançar um olhar direto e sem fiscais sobre um passado que eles mesmos, tantas vezes, confessam já não compreender mais. Quem nos garante que, examinando por nossa conta a antigüidade greco-romana, a cristandade medieval, a remota herança dos povos orientais, não seremos capazes de descobrir aí certos tesouros que foram esquecidos pelo establishment cultural euro-ianque ou que mesmo escaparam completamente ao seu horizonte de visão? Quem, que autoridade, que dogma inabalável nos reduz à condição de herdeiros indiretos que só podem ler Marco Aurélio com os olhos de Renan, Parmênides com os de Heidegger ou Aristóteles com os de Jaeger? Quem nos arrebata o privilégio de desfrutar diretamente de uma herança que não pertence só aos povos ricos e que os povos ricos tantas vezes desprezaram, traíram, aviltaram e perderam? Quem nos assegura que a linha de evolução intelectual da Europa moderna foi a única ou a melhor possível que poderia ter-se desenvolvido a partir do legado medieval e antigo? Por que embarcar na paralisante suposição apriorística de que não podemos descobrir aí novos e inéditos desenvolvimentos? Por que fazer da história intelectual européia o modelo paradigmático e inescapável da sucessão dos tempos? Por que repetir, como um disco rachado, que as coisas não poderiam ter sido de outro modo e recusar-nos a experimentar outros modos possíveis? Por que não podemos escandalizar e chacoalhar a empáfia dos usurpadores, lendo Heidegger através de Parmênides, Nietzsche através de Sócrates, a modernidade através da Idade Média? Por que não podemos, em vez de medir o passado com a régua dos senhores do dia, julgar os senhores do dia à luz das sementes cujo máximo e perfeito desenvolvimento eles, sem a mínima prova, asseguram representar? Por que não nos atravemos a provar que as antigas sementes, plantadas em terra nova, podem dar melhores e mais doces frutos do que as ideologias européias, o comunismo, o fascismo, duas guerras mundiais e a presente degradação intelectual do mundo?
Não fomos só nós que caímos na esparrela de abdicar de uma herança que nos pertence. Os portugueses, inferiorizados por não acompanhar pari passu o pensamento moderno, acabaram se esquecendo daqueles fantásticos filósofos de Coimbra, mestres de Leibniz, que em pleno século XVI já pensavam em economia de mercado e física probabilística, saltando três séculos sobre a ilusão mecanicista cujo prestígio, tão invejado pelos ìluministas lusos, só fez atrasar o desenvolvimento das ciências e inspirar, na política, os frutos mais letais do estatismo centralizador. Até hoje Portugal, como um príncipe bêbado que se imaginasse mendigo, atribui suas desventuras ao fato de não ter tido seu Voltaire ou seu Rousseau, quando seu único erro foi o de esquecer-se de si, o de não conseguir olhar seu próprio passado senão no espelho enganoso da modernidade alheia.
Por ironia, justamente nisso continuamos imitando servilmente Portugal. Iludidos pelo dogma de que o presente abrange todo o passado — quando por definição nenhum conjunto de fatos esgota o possível —, recusamo-nos a receber o legado das grandes épocas e continuamos mendigando às portas da mediocridade européia (e americana) atual. Barramos assim nosso acesso a uma verdadeira universalidade e continuamos nos agitando em vão na falsa alternativa cíclica do estrangeirismo e do localismo, ora em formato puro, ora ressurgida sob o disfarce do elitismo e do populismo.
Reincide no engano —só para dar um exemplo recente — o livro de Marcos Bagno, Preconceito Lingüístico. O Que É, Como Se Faz (1), ao assumir a defesa do mais entrópico laissez-faire gramatical contra toda tentativa de conservar a unidade da norma culta, abominada como mecanismo de exclusão social e opressão dos pobrezinhos. Adornando de terminologia técnica uma argumentação que no fundo não passa do habitual apelo ao ressentimento populista contra os adeptos do purismo vernáculo, supostamente também senhores do capital — ai, meu Sacconi! —, o autor nem de longe dá sinal de perceber que, afrouxada a norma portuguesa, o que haverá de predominar não será o democratismo igualitarista das falas populares, autoneutralizantes por sua multiplicidade mesma, e sim a influência ordenadora da norma anglo-americana, ocupando substitutivamente — e usurpatoriamente — o lugar da regra vernácula. Isso aliás já vem acontecendo, como se vê pela alarmante disseminação do uso de palavras portuguesas montadas segundo uma sintaxe inglesa — "amanhã estarei indo viajar" —, o que já não é mais a corriqueira assimilação de vocábulos estrangeiros e sim precisamente o contrário de uma assimilação: é uma adaptação do material nacional à forma dominante estrangeira, é ser assimilado, é fazer o papel da alface na fisiologia do coelho. Toda cultura nacional é um vasto sistema de incorporações, no qual manifestações isoladas e locais vão se integrando numa unidade superior, e isto acontece com a língua tanto quanto com as idéias. Se, no topo, esse movimento não encontra um critério de unidade que lhe seja próprio, ele logo se amolda a um de fora, preferindo antes ser assimilado do que voltar à dispersão de onde partiu. Se o prof. Bagno fosse um agente consciente do imperialismo, pretendendo dissolver a nossa unidade lingüistica para lhe sobrepor a americana, seu livro seria obra de inteligência, mista de maquiavelismo. Mas não: ele é apenas mais um esquerdista doido, desses que, ansiosos para expressar sua miúda revolta imediatista e cega, não sabem a quem servem em última instância e aliás não querem nem saber: falam o que lhes dá na telha e, de tempos em tempos, constatam, mais revoltados ainda, que tudo deu errado e seu mundo caiu.
Para cúmulo de inconsciência, o prof. Bagno, citando indevidamente Aristóteles, proclama que sua obra é política, quando a política para o Estagirita é o cuidado do bem comum, isto é, a vigilância sobre os rumos da sociedade como um todo, e nunca a adesão parcialista a exigências de grupos ou classes, defendidas como se valessem por si e sem o mínimo exame das conseqüências que seu atendimento possa produzir sobre o corpo da sociedade integral. Para os meninos da Febem ou para o lavrador de Ponta Grossa, pode ser bom ou pelo menos cômodo, a curto prazo, que os deixem escrever como falam, sem subjugá-los à uniformidade da norma. Subjetivamente, eles talvez se sintam, assim, menos excluídos. Mas, objetivamente, aí sim é que estarão excluídos, aprisionados na sua particularidade e sem acesso à conversação das classes cultas. Tudo depende de saber se preferimos enfraquecê-los pela lisonja ou fortalecê-los pela disciplina. Há nisso uma escolha moral que os amigos do povo preferem não enxergar. E se, levando as opiniões do prof. Bagno às últimas conseqüências, as próprias classes cultas desistirem da norma unitária e, para não passar por preconceituosas ante o olhar malicioso dos ressentidos, adotarem como obrigatória a entropia populista, então das duas uma: ou a entropia arrastará na sua voragem o pouco de possibilidade de diálogo racional que ainda resta neste país, ou então uma norma substitutiva acabará por se impor, e ela certamente virá da rede das telecomunicações, cujo idioma e padrão é o inglês. Qualquer das duas coisas será indiscutivelmente boa, mas para os Estados Unidos. E, se me perguntarem se o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o Brasil, direi, de novo, que é uma simples questão de quem come quem.


Minha opinião:


Interessante a afirmação: “Um efeito cíclico da nossa obsessão identitária é que, quanto mais nos afastamos da nossa raiz autêntica lusitana, mais temos de tomar emprestada a seiva alheia...”
RAIZ AUTÊNTICA LUSITANA!!!!!! Como assim?Não sinto esta raiz em canto nenhum da minha vida e história, pelo contrário, sinto um grande abismo.
Sinto-me como uma índia nua, com pé no chão, banho de rio em noite de luar e um arrepio que sobe ou desce, não sei definir bem, quando ouço um atabaque, um tambor... O ritmo toma conta de mim!!! Raiz que eu definiria como AFRO TUPI-GUARANI, AHHHH ESTA EU SINTO SIM!
Como negar isto? Continuar a oprimir? Julgar como errado o multiculturalismo do povo brasileiro? Isto não dá! Em tudo está evidenciado nossas heranças: na cultura , no alimento, na dança, nas construções e não poderia ser diferente com a nossa fala , maneira de expressar-se.
Como educadora penso que devemos banir qualquer tipo de preconceito. Devemos analisar o perfil de nossos alunos, realizar uma reflexão acerca das variações lingüísticas e oportunizar acesso a língua materna padrão,para que ele possa fazer uso social adequado da língua, sem desmerecer a sua história de vida e de seus familiares.