A língua do sertão
Pesquisadores de quatro universidades brasileiras seguem a trilha dos bandeirantes e descobrem no jeito caipira de falar marcas do português arcaico
Conceição Freitas Da equipe do Correio
Se um goiano caipira diz ‘‘pessuir’’ em vez de ‘‘possuir’’ ou ‘‘percisão’’ no lugar de ‘‘precisão’’ não se trata de uma inabilidade no uso da língua portuguesa, como se costuma pensar. São marcas de um português arcaico, trasladado para o interior do país pelos bandeirantes em fins do século 17 e durante o século 18. Essa herança se espraiou pelo interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso e persiste até hoje no modo de falar de velhos habitantes das regiões por onde passaram os bandeirantes. Faz quatro anos que pesquisadores de universidades desses quatro estados brasileiros seguem o roteiro das bandeiras para entrevistar moradores antigos dos povoados mais afastados. Cerca de 80 pessoas já foram entrevistadas, o que resultou em centenas de horas de gravação e na descoberta das marcas da língua portuguesa falada pelos bandeirantes paulistas. ‘‘Partimos do princípio que o período da mineração de lavra pode ter sido, senão o mais intenso, sem dúvida, o primeiro entre os mais intensos movimentos de contatos lingüísticos no país. Línguas nativas, português e línguas africanas que conviveram estreita e intensamente nesse período’’, relata Heitor Megale, professor de Língua Portuguesa e de Filologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Filologia Bandeirante. O projeto nasceu nas aulas de pós-graduação em História da Língua Portuguesa, na USP, durante a leitura de textos portugueses dos séculos 13, 14 e 15. Os alunos identificavam, com freqüência, traços lingüísticos semelhantes ao Português falado ou mesmo escrito no Brasil. Era preciso, no entanto, ir a campo rastrear essa hipótese. ‘‘Surgiu então a proposta de se fazer um percurso por trilhas dos movimentos de ida para o sertão, para conferir se seria possível ainda encontrar-se alguma identificação desse português em entrevistas com idosos radicados no lugar’’, conta o professor Megale, É o que tem sido feito há quatro anos por pesquisadores da USP e das universidades federais de Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso. O projeto caminha em dois sentidos: segue a trilha dos bandeirantes para localizar pessoas com idade entre 60 e 90 anos, filhas ou netas de moradores da região, analfabetas ou de baixa escolaridade, que tenham se mantido razoavelmente isoladas e sem nenhum ou quase nenhum acesso aos meios de comunicação. E escarafuncha quase mil páginas de manuscritos dos séculos 17 e 18 recolhidas em arquivos e cartórios das regiões mais dominadas pela expansão bandeirante. Nesse percurso, os pesquisadores encontram no sul de Minas e no interior de São Paulo expressões do tipo: ‘‘Dá uma esmolna por amor de Deus’’. Esmolna remonta aos séculos 13 ou 14, do latim eleemosyna, esmola. Em Goiás, os pesquisadores encontraram a palavra treição (traição) que está em textos do poeta português Sá de Miranda, do século 16, mas com a acepção de de repente, no sentido de surpresa. Pessuir, por exemplo, é uma forma encontrada em escritos do século 18. A forma despois, muito usada neste vasto sertão do Centro-Oeste brasileiro, era usada no século 17, e até hoje faz parte da linguagem popular do português de Portugal. Formas que são desqualificadas, ironizadas ou tratadas como incompetência dos matutos no uso da língua portuguesa são, na verdade, palavras que vêm desde o século 13, 300 anos antes de Pedro Álvares Cabral ancorar na costa brasileira. As formas quaje ou quase (o atual quase), quige (quis) e fie (fiz) são desse período. Toda essa herança que resiste aos séculos demonstra o quão intenso foi o contato de línguas nativas com o português. Sim, porque antes de os bandeirantes se embrenharem Brasil a dentro, os povos isolados do sertão falavam a língua geral, como é chamado o tupi-guarani usado pelos índios na época do Brasil colônia. O projeto Filologia Bandeirante, como explica o professor Heitor Megale, avança um pouco mais no estudo, ainda incipiente, do Português falado no Brasil. Mais que isso, o projeto permitiu aos pesquisadores conviver com pessoas que passam privações, mas vivem sem pressa — como seu Severino, de São Tiago, Minas Gerais, que disse: ‘‘A vida aqui, moço, é dura, é dura, é dura diveras.’’. Diz o professor Megale, já na fase final do projeto: ‘‘Tenho recebido imensas e ricas lições de vida desses brasileiros isolados. Eles têm uma nobreza, como a linguagem que lhes é própria, que não encontramos na vida urbana.’’
Conceição Freitas Da equipe do Correio
Se um goiano caipira diz ‘‘pessuir’’ em vez de ‘‘possuir’’ ou ‘‘percisão’’ no lugar de ‘‘precisão’’ não se trata de uma inabilidade no uso da língua portuguesa, como se costuma pensar. São marcas de um português arcaico, trasladado para o interior do país pelos bandeirantes em fins do século 17 e durante o século 18. Essa herança se espraiou pelo interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso e persiste até hoje no modo de falar de velhos habitantes das regiões por onde passaram os bandeirantes. Faz quatro anos que pesquisadores de universidades desses quatro estados brasileiros seguem o roteiro das bandeiras para entrevistar moradores antigos dos povoados mais afastados. Cerca de 80 pessoas já foram entrevistadas, o que resultou em centenas de horas de gravação e na descoberta das marcas da língua portuguesa falada pelos bandeirantes paulistas. ‘‘Partimos do princípio que o período da mineração de lavra pode ter sido, senão o mais intenso, sem dúvida, o primeiro entre os mais intensos movimentos de contatos lingüísticos no país. Línguas nativas, português e línguas africanas que conviveram estreita e intensamente nesse período’’, relata Heitor Megale, professor de Língua Portuguesa e de Filologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Filologia Bandeirante. O projeto nasceu nas aulas de pós-graduação em História da Língua Portuguesa, na USP, durante a leitura de textos portugueses dos séculos 13, 14 e 15. Os alunos identificavam, com freqüência, traços lingüísticos semelhantes ao Português falado ou mesmo escrito no Brasil. Era preciso, no entanto, ir a campo rastrear essa hipótese. ‘‘Surgiu então a proposta de se fazer um percurso por trilhas dos movimentos de ida para o sertão, para conferir se seria possível ainda encontrar-se alguma identificação desse português em entrevistas com idosos radicados no lugar’’, conta o professor Megale, É o que tem sido feito há quatro anos por pesquisadores da USP e das universidades federais de Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso. O projeto caminha em dois sentidos: segue a trilha dos bandeirantes para localizar pessoas com idade entre 60 e 90 anos, filhas ou netas de moradores da região, analfabetas ou de baixa escolaridade, que tenham se mantido razoavelmente isoladas e sem nenhum ou quase nenhum acesso aos meios de comunicação. E escarafuncha quase mil páginas de manuscritos dos séculos 17 e 18 recolhidas em arquivos e cartórios das regiões mais dominadas pela expansão bandeirante. Nesse percurso, os pesquisadores encontram no sul de Minas e no interior de São Paulo expressões do tipo: ‘‘Dá uma esmolna por amor de Deus’’. Esmolna remonta aos séculos 13 ou 14, do latim eleemosyna, esmola. Em Goiás, os pesquisadores encontraram a palavra treição (traição) que está em textos do poeta português Sá de Miranda, do século 16, mas com a acepção de de repente, no sentido de surpresa. Pessuir, por exemplo, é uma forma encontrada em escritos do século 18. A forma despois, muito usada neste vasto sertão do Centro-Oeste brasileiro, era usada no século 17, e até hoje faz parte da linguagem popular do português de Portugal. Formas que são desqualificadas, ironizadas ou tratadas como incompetência dos matutos no uso da língua portuguesa são, na verdade, palavras que vêm desde o século 13, 300 anos antes de Pedro Álvares Cabral ancorar na costa brasileira. As formas quaje ou quase (o atual quase), quige (quis) e fie (fiz) são desse período. Toda essa herança que resiste aos séculos demonstra o quão intenso foi o contato de línguas nativas com o português. Sim, porque antes de os bandeirantes se embrenharem Brasil a dentro, os povos isolados do sertão falavam a língua geral, como é chamado o tupi-guarani usado pelos índios na época do Brasil colônia. O projeto Filologia Bandeirante, como explica o professor Heitor Megale, avança um pouco mais no estudo, ainda incipiente, do Português falado no Brasil. Mais que isso, o projeto permitiu aos pesquisadores conviver com pessoas que passam privações, mas vivem sem pressa — como seu Severino, de São Tiago, Minas Gerais, que disse: ‘‘A vida aqui, moço, é dura, é dura, é dura diveras.’’. Diz o professor Megale, já na fase final do projeto: ‘‘Tenho recebido imensas e ricas lições de vida desses brasileiros isolados. Eles têm uma nobreza, como a linguagem que lhes é própria, que não encontramos na vida urbana.’’
GOIÁS E TOCANTINS SERTANEJOS
Moradores das seguintes cidades foram entrevistadas para a pesquisa Filologia Bandeirante
Amaro Leite
Boa Vista do Tocantins (atual Tocantinópolis)
Cana Brava (atual Minaçu)
Catalão
Descoberto (atual Porangatu)
Guarocumbá (atual Corumbá)
Meia Ponte (atual Pirenópolis)
Mestre d’Armas (atual Planaltina)
Nossa Senhora da Natividade (atual Natividade)
Porto Imperial (atual Porto Nacional)
Santo Antônio do Morro do Chapéu (atual Monte Alegre de Goiás)
São José do Caiamares (atual São José do Cajamar)
São José do Tocantins (atual Niquelândia)
Vila Boa de Goiás (atual Goiás)